Emilio Luis da Silva e Maria Lúcia Maciel em frente ao barraco
onde vivem.
Apesar de expressivos avanços no combate à extrema pobreza, erradicar a
miséria do Brasil e transformá-lo num país de classe média será mais complexo e
demorado do que o discurso do governo sugere, segundo especialistas ouvidos pela
BBC Brasil.
Há duas semanas, à frente de uma placa com o slogan "O fim da miséria é só um
começo" – provável lema de sua campanha à reeleição –, a presidente Dilma
Rousseff anunciou a ampliação das transferências de renda às famílias mais
pobres que constam do Cadastro Único do governo.
Com a mudança, os mais pobres receberão repasse complementar para que a renda
per capita de suas famílias alcance ao menos R$ 70 ao mês – patamar abaixo do
qual são consideradas extremamente pobres pelo governo. A alteração, diz o
governo, permitirá que 2,5 milhões de brasileiros se somem a 22 milhões de
beneficiários do Bolsa Família que ultrapassaram a linha da pobreza extrema nos
últimos dois anos.
Para que o programa seja de fato universalizado, porém, o governo estima que
falte registrar 2,2 milhões de brasileiros miseráveis ainda à margem das
políticas de transferência de renda, o que pretende realizar até 2014.
Especialistas em políticas antipobreza ouvidos pela BBC Brasil aprovaram a
expansão do programa, mas fazem ressalvas quanto à promessa do governo de
erradicar a miséria.
Para Otaviano Canuto, vice-presidente da Rede de Redução da Pobreza e
Gerenciamento Econômico do Banco Mundial, o Bolsa Família – carro-chefe dos
programas de transferência de renda do governo – é bastante eficiente e tem um
custo relativamente baixo (0,5% do PIB nacional).
Canuto diz que o plano e outros programas de transferência de renda ajudam a
explicar a melhora nos índices de pobreza e desigualdade no Brasil na última
década, ainda que, somados, tenham tido peso menor do que a universalização da
educação – "processo que vem de antes do governo Lula" – e a evolução do mercado
de trabalho, com baixo desemprego e salários reais crescentes.
Apesar do progresso, estudiosos dizem que, mesmo que o Cadastro Único passe a
cobrir todos os brasileiros que hoje vivem na pobreza, sempre haverá novas
famílias que se tornarão miseráveis.
Há, ainda, questionamentos sobre o critério do governo para definir a pobreza
extrema – renda familiar per capita inferior a R$ 70, baseado em conceito do
Banco Mundial que define como miserável quem vive com menos de US$ 1,25 por
dia.
Adotado em junho de 2011 pelo governo, quando foi lançado o plano Brasil Sem
Miséria (guarda-chuva das políticas federais voltadas aos mais pobres), o valor
jamais foi reajustado. Se tivesse acompanhado a inflação, hoje valeria R$
76,58.
Em onze das 18 capitais monitoradas pelo Dieese (Departamento Intersindical
de Estatística e Estudos Socioeconômicos), R$ 70 não garantem sequer a compra da
parte de uma cesta básica destinada a uma pessoa. Em São Paulo, seriam
necessários R$ 95,41 para a aquisição.
Em 2009, o então economista-chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação
Getúlio Vargas, Marcelo Neri, defendeu em artigo que a linha de miséria no país
fosse de R$ 144 por pessoa. Essa linha, segundo o autor, que hoje preside o IPEA
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, órgão ligado à Presidência), atende
necessidades alimentares mínimas fixadas pela Organização Mundial da Saúde.
O economista Francisco Ferreira, também do Banco Mundial, considera positivo
que o Brasil tenha definido uma linha de pobreza, mas afirma que o valor deveria
ser ajustado ao menos de acordo com a inflação e que está "muito baixo" para o
país.
Segundo Ferreira, o Banco Mundial estabeleceu a linha de miséria em US$ 1,25
ao dia para uniformizar seus estudos, mas cada país deveria definir próprios
critérios. "Não me parece adequado que o Brasil adote a mesma linha aplicável a
um país como o Haiti, por exemplo."
Tiago Falcão, secretário de Superação da Pobreza Extrema do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), reconhece que mesmo que o Bolsa
Família chegue a todos os brasileiros pobres sempre haverá novas famílias que
cairão abaixo da linha da miséria.
"Buscamos a superação da miséria do ponto de vista estrutural, para que não
existam brasileiros que não sejam atendidos por nenhuma política pública. E
estamos tentando encurtar o prazo de resgate dos extremamente pobres."
Falcão diz que a linha de R$ 70 responde a compromisso internacional do
governo assumido com as Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM), que previam a
redução à metade da pobreza extrema no país até 2015. Tendo como referência a
linha do Banco Mundial, diz Falcão, o governo se "propôs um desafio muito mais
complexo, que é a superação da extrema pobreza".
"Era uma meta ambiciosa para o Brasil e, por outro lado, factível. Hoje
consideramos que acertamos ao definir a linha de R$ 70".
O secretário diz, no entanto, que se trata de um piso de "carências básicas"
que, uma vez definido, poderá ser aumentado levando em conta as disparidades
regionais e o quão solidária a sociedade quer ser com os mais pobres.
Para Alexandre Barbosa, professor de história econômica do Instituto de
Estudos Brasileiros da USP, o governo deveria levar em conta outros critérios
além da renda em sua definição de miséria. Em 2011, Barbosa coordenou um estudo
do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) intitulado "O Brasil
Real: a desigualdade para além dos indicadores".
O estudo, que contou com apoio da ONG britânica Christian Aid, afirma que as
políticas de transferência de renda melhoraram a vida dos mais pobres, mas não
alteraram a estrutura social brasileira. Barbosa é especialmente crítico à ideia
de que, com a redução na pobreza, o Brasil está se tornando um país de classe
média, tese defendida pela presidente.
"Considerar classe média alguém que recebe entre um e dois salários mínimos,
que mora em zona urbana sem acesso a bens culturais nem moradia decente, que
leva três horas para se deslocar ao trabalho? Essa é a classe trabalhadora que
está sendo redefinida."
Para o professor, a transferência de renda deveria integrar um conjunto mais
amplo de ações do governo com foco na redução da desigualdade. Entre as
políticas que defende estão reduzir os impostos indiretos sobre os mais pobres,
fortalecer cooperativas e agregar valor à produção industrial, para que os
salários acompanhem os ganhos em eficiência.
Falcão, do MDS, diz que o governo já tem atacado a pobreza por vários
ângulos. Segundo ele, o Cadastro Único – "uma inovação em termos de política
social ainda pouco compreendida no Brasil" – revolucionou a formulação de
políticas públicas para os mais pobres.
O cadastro hoje inclui 23 milhões de famílias (ou cerca de 100 milhões de
pessoas, quase metade da população) e é atualizado a cada dois anos com
informações sobre sua situação socioeconômica.
Segundo o secretário, o cadastro tem orientado programas federais de expansão
do ensino integral, fortalecimento da agricultura familiar e qualificação
profissional, que passaram a atender prioritariamente beneficiários do Bolsa
Família.
Para Canuto, vice-presidente do Banco Mundial, manter o Brasil numa
trajetória de melhoria dos indicadores sociais não dependerá apenas de políticas
voltadas aos mais pobres. Ele diz que o "modelo ultraexitoso" que permitiu a
redução da pobreza na última década, baseado no aumento do consumo doméstico e
da massa salarial, está próximo do limite.
De agora em diante, afirma Canuto, os avanços terão que se amparar em maiores
níveis de investimentos, que reduzam o custo de produzir no Brasil.
"É preciso pensar no que é necessário para que, daqui a uma geração, os
benefícios de transferência condicionada de renda não sejam mais necessários.
Para isso, o foco tem que ser em boa educação, acesso à saúde, emprego de
qualidade, melhoria da infraestrutura e espaço para o desenvolvimento do talento
empresarial."